Estas ruas sem almas não me dizem respeito, nem seus becos escuros me soam estranhos, mas a melodia da neblina que recai sobre os telhados e que ecoa solitário por entre os prédios e bares ainda vazios, me parece estranhamente familiar.
Há pessoas por todas as partes, embora na maioria das vezes eu finja não vê-las, não sei se por medo ou vergonha, ou até por achar que muitos deles riem de mim. Eu até queria um cigarro, faz tanto tempo que não fumo, tanto tempo sem heroína, sexo ou álcool, esse tipo de coisa que melhora de forma tão fácil a vida da gente, nos deixando em um estado de torpor, eu sonho acordado ainda que aquilo que eu veja seja somente a escuridão.
Ah, mas dela me lembro bem, o vestido bordô que delimitava perfeitamente o contorno de seu corpo, o batom vermelho que acentuava seus lábios, o seu olhar de moça inocente, o modo como fumava e parecia não saber o que o cigarro fazia em sua boca. Naquela madrugada seca embriagamo-nos de vodka barata e conversamos sobre os nossos dramas triviais, ela era um mulher de poucas idéias, mas que conseguia me distrair com as suas mentiras.
Houve uma época em que não me importava se haveria a tarde seguinte, ou se descobriria um novo céu para a minha existência. Foram tempos estranhos de palavras escasssas e auto-piedade, e que parecem voltar agora com muito mais força, como uma dor que mostra-se intrínseca a mim.
Não me sinto mal assim desde o dia em que quebrei minha máquina de escrever, acho. Aliás, aquela foi a última vez em que a encontrei, perdida pelas esquinas de nossa cidade, procurando algum bêbado solitário interessado em lhe pagar o seu almoço do dia seguinte, ou meramente uma criança louca disposta a compartilhar de sua droga. Eu fui o louco, e fui o bêbado também.
Eu fui o amante, o panaca que não sabe o que quer, fui o falso amigo, o otário que empresta a pouca grana que tem, fui o consolo. Ela se divertia com meu desespero, me chamava de garoto perdido e me levava à sua cama úmida. Grande porcaria; ela mal sabia o que fazer, não sabia quem era ou para onde fugiria quando não desse mais para adiar o pagamento do aluguel ou a conta do bar.
Não sou bom jogador, e me torno pior quando tento a trapaça .Mas dessa vez eu me dei mal pra valer, os caras notaram a minha cara de babaca quando eu saquei o ás de meu bolso. Talvez não fosse tão ruim se não fosse a quarta tentativa, talvez não fosse tão ruim se não fosse o dinheiro que me restava, talvez não fosse tão ruim se não tivessem me esmurrado até meus dentes racharem. Mas é tudo suposição.
Eu vou embora, e dessa vez é sério.Vida de merda, cansei de você, cansei também desta cidade maldita, das madrugadas em claro regadas a rum, das putas que gargalham de meu fracasso, dos amigos que não tenho, das festas lúgubres que vez ou outra freqüentei, e destas ruas sem almas que tanto me sufocam.
Depois de tanto tempo, sinto sono, e sinto alívio. Deve ser por não fazer idéia de onde estarei amanhã quando embarcar no primeiro trem que aparecer na estação, desprovido de mala,arrependimentos ou saudades, levando comigo somente a minha guitarra e o meu fracasso.
Já posso ver ao longe as ruínas que meu coração tanto desejou. Não há mais nada a fazer aqui.
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5 comentários:
passando de mansinho só pra reparar a poetagem boêmia que rola por esses lados,
e da qual te aproprias tão bem.
e eu também, às vezes finjo não ver as pessoas.
um beijo,
Bom enredo para um filme... quase pude ver você n'alguma estação antiga
à espera de seu destino...
um beijo
goodspeed...
Amei seu blog...Amo poesia..Virei sempre aqui!!!
Bjos e muita luz
oie!
me mudei.. tõ aqui agora:
http://sentimentosgastos.blogspot.com/
apareça, ok?
bjo.
Já posso me ver na fila, em sua primeira noite de autógrafo... sim, pq será um Best Seller o seu livro!
Beijocas, querido rabujento =)
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