2011-12-11

Marlboro's Bar

Não mais voltar é o que menos importa agora. O último gole da cachaça ficou preso em minha garganta, quase implorando para voltar à tona, mas eu bravamente recusei.

A camisa rasgada, a cocaína, a anfetamina, os palavrões, os tapas, o batom, a violência do beijo dado, a virulência do beijo recusado, o cheiro do olhar que se desviou; eis a grande sinfonia da noite, a barbárie dos ratos, o banquete dos esfomeados, a verve, a luz negra que acoberta todas as atrocidades, o passo em falso dos trôpegos: o berro.

A gargalhada queima feito veneno na pele amarrada, a língua quase encosta-se a meus tímpanos e balbucia sombreada por um rouco riso falso: “Quantos dólares furados cabem em seu bolso imundo, meu querido?”, eis o silêncio presente na melancolia de todos os remédios.

A fome em toda a sua plenitude ecoa em meu estômago, o desvario da dor estala meus ossos, é quase como um câncer suave e silencioso a percorrer cada decímetro de meu corpo, é como se meus olhos finalmente tivessem alcançado a vivência tapeada pela escuridão. Os vira-latas correm em volta dos postes caídos na avenida, e latem pedindo por socorro, e eu até penso em me juntar à matilha, mas resisto outra vez.

O vento leva consigo a brasa ainda acesa do cigarro, ao chão restam as cinzas, e eu sou o chão, estático e frio, eternamente esperando pelos cuspes e pés, sempre os mesmos pés.

Mais uma madrugada relegada ao silêncio, menos um dia destinado a existir, cada vez mais se torna lógico resistir às traquinagens impostas pela tormenta. De qualquer forma, não me resta alternativa a não ser aceitar tudo aquilo que jogam contra o meu corpo.

A morte, a penitência, o escárnio ou a bênção, a uma hora dessas qualquer gosto ou objeto converte-se numa mera questão de ponto de vista. Não mais voltar jamais importou

Até as baratas sabem o caminho de casa.

2011-10-24

Pra Depois

não me espere na antessala
não me aguarde na véspera
de seu aniversário
não me procure na fumaça
do cigarro alheio
não me olhe em seu retrato
rasgado


não ouça a minha voz no seu
toca-fitas
não guarde as cartas que eu
lhe escrevi


de minha parte,
deixo contigo alguns sonhos
velhos e promessas gastas
e a esperança partida
nos escuros botões de seu paletó

2011-05-26

Anedota

eram dois:

um bêbado e um cego.

o primeiro queria contar as estrelas,
o segundo queria saber a cor do céu.

2011-05-10

Animais Famintos

eram animais famintos aqueles:
talvez cães ferozes à espreita
das horas

farejavam o sangue não
perdoado

fustigavam a fragilidade dos
dias

pareciam sentinelas desprovidas
de esqueleto

balbuciavam sonhos pela imensidão
do corredor deserto

tinham olhos ferinos
embora encobertos

nada se podia ouvir
nada se podia tentar
nada se podia sentir

eram animais famintos aqueles:
debruçando suas frágeis patas
sobre o invisível banquete
da alvorada

2011-04-02

Elegia II

atrás dos barcos
há um porto que se veste de tristeza


e toda a gente se embriaga de cachaça
barata
e apostam seus sonhos nas amareladas
cartas de baralho


vê aquele sete de espadas:
ele vale o retorno do filho
que se vendeu ao mar


vê aquele rei de copas:
ele vale a esperança deixada
em algum cabaré sem luz


vê aquele valete de ouros:
ele vale uma vida emprestada
a um infiel


vê aquele cinco de paus:
ele vale uma lágrima na
areia


toda essa gente não sabe,
mas por detrás dos barcos
que precedem o porto
que se veste de tristeza
ha de existir sempre um
horizonte que desemboca
na eternidade



o porto,
as cartas,
os sonhos,
tudo isso irá acabar


menos o fim:
ele há de resistir intacto
à furia das horas,
enclausurado pelo coringa
que a esperta manga de
um velho apostador
deixa cair sobre o cais
daquela cidade.

2011-03-09

Quarta-Feira

Ainda dormem pelas ruas
os paetês e confetes,
misturados ao som perene das marchas
de dias atrás.


E todas as casas permanecem
enfeitadas de serpentinas.


Menos a minha:
vazia e branca.

Habitada pelo silêncio
de quem um dia a desenhou.

2011-02-03

As Nuvens

Se lembra de toda aquela densa fumaça que parecia engolir a fúria dos automóveis e tingir de prata todos os edifícios e sonhos que, até então, dávamos como terminados?

-Eram apenas nuvens.

2011-01-31

A Morte de Zé Pereira

é a ilusão e mais nada,
é o domingo sem sol,
é a fúria dos mascarados
a atormentar o salão,
é o silêncio das estátuas
nas praças,
é a cor da folia perfurocortante
na inocência da pele,
é o choro calado dos mendigos
sem fantasia,
é o grito da noite nebulosa,
o sopro ardente da liberdade.

o samba fúnebre pede passagem
ao cordão errante de foliões
em desespero.

é a ilusão e mais nada.

2011-01-25

O que Arde

há passaros mortos pela rua
quase tão cinzas como a tempestade
quase tão cegos como a solidão

2011-01-24

Alegoria

acoberta esse veneno
e tampa essa vergonha
que te mancha a pele

você não é mais réu
que os condenados
aqui presentes

e nem é mais santa
que os demônios
que saltam aos
teus ouvidos

[sua alma
é metáfora de carne]

não deixe que a sua queda
te impeça de voar

mesmo que as tuas
asas estejam quebradas

mesmo que não haja
mais céu

mesmo que o horizonte
seja só escuridão

[seu sorriso
é elegia para cegos]

faça do escárnio alheio
a sua oração

e não tenha medo de
semear a derrota

há de existir sempre um
fim

mesmo que não se veja
o ponto final

[...]