2009-10-17

Cão

I
José, talvez.
Quase sempre amado,
mesmo jogado aos restos
ou enxergado como um
mero serviçal.

Dormindo por sobre os papéis
e notícias de outrora.

II
A televisão fica sempre ligada
no Canal 4 da parabólica.
Alguns fiapos de palha de aço
encobrem os restos de suas
antenas.

Há um perene domingo a
existir ali dentro.

III
O assoalho de cor salmão
da janela localizada na lateral
de seu quarto,
apresenta pequenas rachaduras
que apareceram com o passar
dos anos.

Ele bebe meio-gole do café ralo
que acabara de preparar.

"Mas que merda, exagerei no açúcar"

IV
A vitrola toca músicas de um antigo
disco de Amado Baptista, ainda que
em um volume abaixo dos padrões,
recém-saída de um conserto improvisado
não muito bem sucedido.

V
Naquele mesmo instante,
o cão morto já não mais chorava,
já não mais latia o seu oculto desespero,
nem mais corria atrás do pedaço de bife
ensanguentado que lhe havia custado
a existência.

VI
Seu nome era Bob,
mas ninguém jamais soube disso.

O que torna a informação
uma mera referência desnecessária.

VII
Ainda José, talvez.

Tem 43 anos, trabalha em um
matadouro,
sonha um dia em transar com
Mara Maravilha,
possui um irmão albino residente
em Porciúncula e nunca foi ao
dentista.

VIII
Seu prato predileto é tutu de feijão.

2009-10-05

Adaga de Papel

Não te abales minha amada,
é só a chuva: já passa.
Pior do que ela,
são os trovões.

Não fujas ainda, minha amada.
São só as vozes da mascarada
noite: já se calam.

E ainda virão as mariposas,
são elas quem devemos temer.

Não escondas teu rosto.
A adaga que guardo cá comigo é de papel,
além disso, há soldados inermes por toda a parte.

Mas não tente ouvi-los: a ira os emudecem.

Do que tens medo?
Se após a tormenta que insiste em perseguir-nos
e da calmaria que teima em atrasar,
não conseguirmos chegar à celeste ágape,
aguardemos silenciosamente pelo retorno de nossos
guardiões.

Por enquanto,
cinzas.