2009-12-30

Desfecho

Pelas esquinas, poetas
pelos mendigos, profetas
pela navalha: a dor.

Pelas favelas, meninos
pelos badalos e sinos
pela palavra: a música.

Pelas enchentes, naufrágios
pelos romances, presságios
pela poeira: o chão.

[pessoas choram ao fundo]

2009-11-22

A Bailarina Cega

Rodopiava por cima de seu
sonho branco,
sem se importar com o passo torto
de seus pés
ou com a venda de carne que lhe
tampava a vista

Despia-se de seu véu imaginário,
como quem tira a máscara
na quarta-feira de cinzas

O trapézio do circo era a sua
escuridão,
e ela sorria infantilmente a cada
tombo claro que lhe manchava
a maquiagem encardida.

2009-10-17

Cão

I
José, talvez.
Quase sempre amado,
mesmo jogado aos restos
ou enxergado como um
mero serviçal.

Dormindo por sobre os papéis
e notícias de outrora.

II
A televisão fica sempre ligada
no Canal 4 da parabólica.
Alguns fiapos de palha de aço
encobrem os restos de suas
antenas.

Há um perene domingo a
existir ali dentro.

III
O assoalho de cor salmão
da janela localizada na lateral
de seu quarto,
apresenta pequenas rachaduras
que apareceram com o passar
dos anos.

Ele bebe meio-gole do café ralo
que acabara de preparar.

"Mas que merda, exagerei no açúcar"

IV
A vitrola toca músicas de um antigo
disco de Amado Baptista, ainda que
em um volume abaixo dos padrões,
recém-saída de um conserto improvisado
não muito bem sucedido.

V
Naquele mesmo instante,
o cão morto já não mais chorava,
já não mais latia o seu oculto desespero,
nem mais corria atrás do pedaço de bife
ensanguentado que lhe havia custado
a existência.

VI
Seu nome era Bob,
mas ninguém jamais soube disso.

O que torna a informação
uma mera referência desnecessária.

VII
Ainda José, talvez.

Tem 43 anos, trabalha em um
matadouro,
sonha um dia em transar com
Mara Maravilha,
possui um irmão albino residente
em Porciúncula e nunca foi ao
dentista.

VIII
Seu prato predileto é tutu de feijão.

2009-10-05

Adaga de Papel

Não te abales minha amada,
é só a chuva: já passa.
Pior do que ela,
são os trovões.

Não fujas ainda, minha amada.
São só as vozes da mascarada
noite: já se calam.

E ainda virão as mariposas,
são elas quem devemos temer.

Não escondas teu rosto.
A adaga que guardo cá comigo é de papel,
além disso, há soldados inermes por toda a parte.

Mas não tente ouvi-los: a ira os emudecem.

Do que tens medo?
Se após a tormenta que insiste em perseguir-nos
e da calmaria que teima em atrasar,
não conseguirmos chegar à celeste ágape,
aguardemos silenciosamente pelo retorno de nossos
guardiões.

Por enquanto,
cinzas.

2009-09-26

Caravelas

Se não for um cais,
talvez seja refúgio.
Um ponto morto que
sirva de colisão
para todas as minhas quedas.

Ontem ao amanhecer,
lhe dediquei todos os bem-te-vis
que aguardavam ansiosos pela
partida da primavera.

E guardei em meu bolso [agora furado]
a luminescente lembrança de seu
abraço frio,
como forma de abastecer a minha dor

Ou suavizá-la, quem sabe.

Quando se aproxima o fim,
tanto os sonhos, como a realidade
parecem não fazer mais sentido
agora que não há mais horizonte.

Mas perdura o som que não mais
ecoa,
e adormece a mão que não mais
sente o tato,
assim como entardece a vida que
jamais fora vivida fora deste pomar.

Depositei os restos de minhas
lembranças em estranhas caravelas
e as joguei ao mar.

E se me perguntarem o motivo
para tamanha desilusão,
apenas direi que, a mim,
estar vivo,
é recompensa suficiente
para apagar o repentino deserto
que repousa sobre os meus pés.

2009-07-24

Jazz



-Um cigarro, só mais um maldito cigarro. É tudo o que preciso.

Acordei com o gosto amargo de conhaque vagabundo escorrendo pela fresta de minha boca. Acordei com a ressaca igual a todas as derrotas estampada bem no meio da minha cara. Não, eu não acordei. Ou talvez não quisesse. Há dias em que eu não deveria ter acordado, nos tempos atuais, sonho é um bem tão valioso quanto uma geladeira nova. E eu já tenho uma geladeira, e tudo o que há dentro dela são ovos.

Ela me levou aquele bar da fachada em neon azul, onde apenas as vogais do nome piscavam. Ela tinha um vestido cinza que se confundia com a noite. Dentro do bar era tudo rosa-choque, uns negões simpáticos tocavam versões de músicas do John Coltrane, e o lábio inferior dela tinha gosto de cigarro aceso.

-E me queimou a língua.

Eu me lembro de estar tonto o suficiente para convidá-la a dançar. Ela fingiu rir e se virou, perdendo-se entre as plumas e chapéus panamá que enfeitavam o ambiente. Não, eu não fui atrás dela, em vez disso, me sentei na primeira cadeira que vi e fiquei a assoviar algumas cantigas que minha vó cantava para me fazer dormir, quando criança. Mas ela voltou. Estava ainda mais cinzenta, passou as mãos por entre as minhas pernas, balbuciou algumas palavras em espanhol nos meus ouvidos. O seu lábio inferior ainda tinha gosto de cigarro aceso.

-E me queimou os olhos.

Os amigos dela eram como os gatos pardos que só existem à noite, pois de dia dormem por debaixo de todo o lixo que permeia o chão da cidade, para após o pôr-do-sol vestirem suas coroas de lata e reinarem sobre todos os marginais. Era como se eu não conseguisse vê-los, mas eles me olhavam de cima a baixo, e pareciam fazer piadas, tamanha era a alegria de todos ali.

-Piadas nunca são engraçadas, nem mesmo as minhas.

Não a vi indo embora. Mentira, vi sim. Mas preferi me esconder em algum canto e terminar o meu conhaque, com medo do dia seguinte. Eu jamais procurara alguma espécie de alegria nas luzes artificiais da noite, mas em vez disso, sempre me achava envolto pela nebulosidade alva dos olhos que se despiam das suas vendas.

-Os olhos dela me queimavam o estômago.

Então, eu caí. E acordei implorando a Deus ou sabe lá quem, por apenas mais um cigarro. Um mísero cigarro que pudesse queimar a saudade acesa que se enjaulava dentro de mim.

2009-05-08

A Vida

Só havia noite
na clarividência da voz
que se mostrava quente,
encoberta pelo manto
bege da ignorância.

E se cuspiam estrelas
naquele chão de zinco
daquela casa torta,
daquela gente pálida
de paletó azul.

Não mais havia cólera
no tumor oculto
que ardia nunca,
nunca mais se alastrava,
nunca mais se enxergava.

Nunca mais se era
naquele tempo avulso

onde pisavam todos
sobre os papéis picados
e cintilantes

em que se refletiam pedaços
tão pequenos quanto os dias
e os céus.

2009-04-24

Herói

Olhe para fora: é o mundo que está ali, fugindo de nosso alcance, brilhando como nunca ousou brilhar, fazendo arder os seus frágeis olhos vendados pela vã esperança. É este mesmo mundo que você tentou tomar para si, escondendo à vista de quem buscava mais uma vez reencontrar a sua voz, o mesmo mundo que lhe viu sentir tamanha fome, mesmo depois de ver sua boca encoberta pela poeira.

Um dia, você implorou para ser enterrada viva, eu estava lá, fui eu que recebi o papel de herói marginal, um cavaleiro manco e sujo, vilipendiado pelo seu cavalo de patas quebradas, mas disposto a lhe emprestar a efêmera salvação. Mentira, era tudo uma hilária mentira, e nós sabíamos de cor todas as chagas de nossos personagens, tomamos em mãos aquele ralo sangue vociferado por cima das ruínas de pedras que, até então, repousavam em seu peito.

De fato, após tantos caminhos abarrotados de vidros, e tantas porradas infringidas em nome de santos que julgávamos impuros, nos sobrava a insana felicidade em descobrir que os túmulos deixados à nossa frente, nada mais eram do que espelhos das tristezas confinadas naquela prisão desfeita de grades.

E, mesmo trôpego, com o sopro asmático de dignidade que a minha alma me deixava, digo sem medo de errar, que cumpri com o meu papel. Posso ter caído em todas as vezes que lhe tentei resgatar, mas não me faltou fôlego para mergulhar na mais espessa lama, agarrar em suas mãos e beijá-las às faces, com o afã de me embebedar com as suas lágrimas.

Em dado momento, parecemos ouvir gritos oriundos daquele velho mundo que, a partir de então, se propunha a nos negar, escondendo seus braços de nossa vista, e dando fim à minha tragicômica epopeia.

E cá estamos, finalmente deitados neste leito que nos foi emprestado, assistindo imóveis ao encerramento da tragédia por você reinventada, livres por não mais termos amarras nas canelas, mas ainda presos aos ohos viscerais da eternidade.

Ainda assim, rimos. Não precisamos mais mentir se, a esta altura, não haverá ninguém capaz de sepultar a nossa farsa.

Levante-se, olhe à sua esquerda e contemple todos esses corpos que agora parecem se rebelar: nós nunca estivemos tão próximos ao céu.

2009-04-18

Epístola ao Poeta Morto

E não pense
que teus escritos
lhe eternizarão,

ou que celebrarão festejos
às suas memórias.

E nem guarde a esperança
de que chorarão aos montes
pela sua partida,

ainda que lhe tenha
a marca trágica das
gloriosas derrotas.

Mas ainda assim,
deixo aqui o meu poema
e o meu aplauso.

2009-04-02

Alameda dos Sonhos Perdidos

Novamente encontrava-se sem rumo, despossuído de promessas e submerso nas velhas desilusões que voltavam a alimentar seus olhos castigados, tanto como havia sido outrora.


Não sabia mais onde encaixar os pés, e temia por ter de voltar ao ponto que havia caído, sem mais encontrar uma mão disposta a levantá-lo. Talvez por isso, ele não mais tivesse a certeza de estar caminhando com os pés amarrados ao chão de pó.

Mas a infantil esperança ainda o tomava como par, aquela voz insistente e quase muda, que o ordenava a seguir, não importando para onde ou por qual motivo, independente do caminho ou da distância a ser traçada; habitava ali, a estridente vontade de recomeçar.

Nem que para isso, fosse preciso fazer da agonia a sua voz.


[Essa é a história do cara que confundia nuvens com o chão e, desta forma, queria fazer do céu uma alameda torta para comportar todos os seus sonhos perdidos]

2009-01-31

Passado

Tentei fugir de onde jamais estive, talvez por desejar chegar a um lugar em que me fosse possível ser apenas um espectro, refletindo as dores e incertezas daqueles que vagam pelo mundo à espera de suas fantasias rasgadas.

Eu vi portas serem abertas e castelos desmoronarem frente ao temor que se transformara em cólera, pois não era mais permitido cultivar sonhos ou celebrar festejos, mesmo que não mais existissem arestas separando as vozes dos sujos e o lamento dos desesperados.

Não tive outra escolha senão a de me entregar ao julgamento silencioso dos ignorantes, de alguma forma, eu sabia que eles também estavam perdidos, mas ao menos, eram cegos o suficiente para enxergar toda a escuridão imanente daqueles dias cobertos de névoas.