2008-11-30

O Último

Pensou estar morto e sorriu vacilante com os olhos rasos d'água. Esfregou as mãos repetidas vezes de forma doentia, celebrando uma espécie de ritual taciturno.
Cerrou a vista amargurada, levantou-se e partiu de volta ao seu começo, prometendo a si mesmo e a quem mais não pudesse ouvir, desfazer todas as suas preces de amor àquela cidade sem alma que ensaiava engolir as suas cinzas.

2008-10-14

Quando Éramos Fortes

-Acho que nunca estive aqui.
-Você nunca quis.
-Talvez isso se deva ao meu hábito de fingir ser invisível às vezes.
-Talvez não.
-É, eu sei.
-Você sabe.

[...]

-Eu não me lembro da última vez em que lhe sorri sem ser obrigado.
-Faz muito tempo.
-Acho que foi naquela vez em que brincamos no Carrossel de um parque abandonado.
-Pode ser que sim.
-Naquele tempo nós éramos fortes, não tínhamos medo de cair.
-E nem de tentar quando fosse preciso haver a segunda vez.
-Ou a segunda chance.

[...]

-Você nada diz.
-Acho que dessa vez não são necessárias tantas palavras.
-Acho que sei o que é isso.
-Não, não sabe. É como se eu soubesse que o céu ainda está por cima de mim, mas ainda assim não me importasse em olhar para o alto.
-E o que você procura?
-Por algo que perdi, mesmo sem jamais ter sido meu.

[...]

-Sinto que a era das incertezas chegou ao fim.
-Pode ser, mas ainda tenho medo.
-Ainda se pode errar, embora não tenhamos mais tanto tempo.
-Disso eu nunca duvidei.
-Então...
-Não sei, diz você.
-Vamos nos levantar e contar as estrelas, hoje a noite não vai acabar.
-Jamais, nem que para isso seja preciso errar mais uma vez.
-Era disso que eu falava, mas agora está estranhamente claro.
-Só nos resta viver.

[...]

-Essa tua ausência é real?

2008-09-01

fotoseqüência n°: 07

Retrato I- Quando é noite ainda

Queima a arte
e pulsa a matéria.

Os poetas riem,
e as putas cobram.

Retrato II- Réquiem

Delira a dor
que se converte em voz.

Subitamente,
um corpo gira.

Retrato III- Da verdade

Não mais desejo,
quem dirá paixão.

E vomitam sangue
num prato sem cor.

Retrato IV- Ensaio para um epílogo

Não serão desatinos,
pois haverá depois.

Os poetas fedem,
e as putas cobram.

2008-08-23

Para Quando Você se Lembrar de Voltar

Incendeie as roupas sujas que agora ardem em brasa defronte à nossa varanda cor-de-frida-kahlo que eu adornei para o dia em que o carnaval esteve aqui. Não traga de volta seu sapato limpo nem a sua insana saudade, mas ficarei feliz se você puder me trazer um pouco de sua voz pigarreante.

Traga também seu sorriso amarelo cor-de-tabaco-vagabundo e todas as suas ilusões, todas as suas fantasias, todas as nossas fotos antigas de quando éramos dois corpos quentes que se degladiavam em busca do efêmero gozo. Só peço para que deixe para trás todas as suas mulheres, todas as suas donzelas, todas as suas princesas, todas as suas plebéias, todas as suas crioulas, todas as suas forasteiras, todas as suas putas que sonham um dia, quem sabe, se tornarem bailarinas do Theatro Municipal.

E não, não, não:


Não teme por me desejar novamente, não tenha medo de querer me ver logo, não tenha medo de arrancar à força meu vestido-azul-desbotado-do-céu-que-irá-cair ou borrar o meu batom rosa-champagne que eu comprei numa queima de estoque em Assunção.

Venha, ainda temo, mas peço que venha, não cansei de esperar, mas peço que venha.

Venha depressa e me guarde lá dentro do teu coração vagabundo.

2008-07-23

Sal do Atlântico

Eram os pés. Eles voavam perdidamente por cima de meu corpo, pareciam não ter vontade de querer encontrar qualquer destino ou direção, simplesmente bailavam entrelaçados pelo céu sujo, sem se importar com o que a minha vista poderia achar daquilo tudo.

Eu havia passado por alguns ocorridos estranhos, os quais não valem a pena relatar aqui, mas mais do que nunca me via à cabeça de forma muito nítida o meu velho tio gordo dizendo o que era de praxe quando eu era mais novo: "Ouça o que eu digo garoto, eu atravessei sozinho o deserto, trajando uma velha jaqueta que eu havia roubado no México e um boné dos Yankees, e mesmo assim eu sobrevivi e cheguei até aqui para poder lhe contar a minha gloriosa jornada. E nenhum homem viverá para cuspir na minha cara, ah não, eu hei de morrer antes, nem que seja por teimosia. Escutou, garoto?"

Ele morreu atropelado alguns anos depois e eu nunca soube dizer se de fato entendia o que ele queria ao me contar tudo aquilo, mas agora a minha vontade era a de pôr algumas roupas na mochila, juntas ao pacote de babatas chips, um maço esmagado de Camel Lights e fugir. Não que eu estivesse triste ou insatisfeito por estar em casa, não era nada disso. Eu apenas sentia que deveria finalmente seguir sem rumo por onde quer que fosse, não me importando onde a minha vontade pudesse me levar. Era um risco que eu deveria correr.

Eu não tinha a pretensão de varrer o deserto ou me afogar no sal do Atlântico, sempre existiram pessoas que estiveram à minha frente para burlar os meus anseios intempestivos, e eu sempre fui fraco, não era difícil para elas concluírem tal tarefa. "Nós iremos dar fim aos seus sonhos", eles diziam. Que babaquice, eu era o homem sem sonhos, nunca quis ser astronauta, pintor de paredes ou rockstar, não traçava planos nem me apaixonava pela vizinha, eu não precisava de nada daquilo.

Mas desta vez era diferente, não haveria ninguém para se pôr entre mim e a estrada, eu correria o máximo que pudesse, seria tão veloz quanto os carros ou as motocicletas, tão ágil quanto os coiotes se preciso fosse, e não pensaria antes de fazer algo que viesse a me auxiliar em meu caminho.

Era apenas o começo do fim, e a essa altura ali estavam os pés a voar por cima de meu corpo, pés desnudos e ásperos, que pareciam ter quase a mesma vontade que eu tinha de não estar mais ali. Arranquei um pedaço de papel do meu diário em branco, e comecei a escrever algumas linhas tortas: eu já tinha uma idéia para o meu epitáfio.

2008-06-03

Murmullo

Voltava a mim então, aquele antigo desejo de me sentir perdido, olhando por todos os lados no aguardo de alguma voz que me pudesse soar familiar, mas ao mesmo tempo era prazerosa a sensação de mais uma vez ser um estrangeito numa terra prometida, um insólito viajante pacato esperando silenciosamente por noites em claro e amizades taciturnas que simulassem preencher o vazio que me habitava.

Eram sentimentos que se debelavam acabando por desembocar em um estado de devassidão que aos poucos eu podia sentir que vinha à tona, ainda que eu não me esforçasse muito para ver ou ter de volta alguns remotos sorrisos que já haviam me sido vendidos de forma tão generosa.

Eu sentia como se o céu me seguisse todas as vezes em que eu descesse àquelas mesmas ruas que sequer sabiam meu nome, eu ia de encontro à tênue cólera restante em mim e em todos os resíduos de lembranças que eu pensava estar reencontrando. Havia sim um anseio de repentinamente bater em todas as portas daqueles sobrados que pareciam tão distantes e olhar as faces de rostos estranhamente conhecidos e me mostrar a eles, rir escancaradamente sem motivo algum; eu precisava me sentir vivo, cortar a própria pele, ir em busca do som que inexistia, sentir o meu próprio suor escorrer pelos braços.

E talvez um dia novamente eu fosse ser um velho jogado num quarto de motel barato em alguma esquina de Montevidéu, acompanhado de uma Coca-Cola sem gás, um cachimbo em ruínas e uma meretriz sonhadora que me assobiasse músicas do Buena Vista Social Club, enquanto eu pisasse prazerosamente sobre aquelas antigas fotos que jaziam queimadas junto ao chão. Eu sentiria o cheiro da fumaça e mais uma vez imploraria cegamente para não ser cedo demais e partir rumo ao mais longíquo porto daquela cidade sem fim, derramando temores e memórias a quem pudesse estar por perto, tendo então um silencioso desejo de mais uma vez estar de regresso ao que me fora deixado.

2008-05-09

Aos que Vivem

Era quase um sempre: travestido de nunca. Todas aquelas palavras que nada ou muito significavam, toda aquela roupa molhada cheirando a chuva, era tudo muito rápido, inconstante, meio escuro talvez.

Todas aquelas pessoas correndo vagarosamente em volta da praça, parecendo desaparecer lentamente de todas as vistas, para algum dia ou hora ou mês ou segundo que o valha, retornarem ao princípio, munidas de um falso desejo de liberdade vã.

Era quase cinza, quase claro, quase todas as tardes. Aquelas flores mordidas pelos cães famintos, aquela música que parecia sair de todas as bocas, as notas musicais que se partiam, o êxtase, a [falta de] respiração, o alento.

Todos os chãos ali estavam, daqui se podia ver, sentir, esmerar a lembrança que se achava estar escondida em cada canto de todos aqueles quartos imundos, repletos de lençóis levemente molhados, impregnados por cada gota de saudade que ali se fazia existir.

Mas não era mais vã a vontade que se tinha de ali estar, nem eram mais frágeis os corpos que se debatiam de forma perene, nem era mais sujo o piso que jazia encharcado. Existia então um sentido que não haveria mais de ser descoberto ou imposto, por trás de todas aqueles remendos e toda aparente parafernália, por debaixo de todos aqueles pés que se entrelaçavam mudos.

À espreita de todo dolorido e imanente vazio, era possível existir o horizonte que finalmente se quedava, quase infantil, vagarosamente, eternizando a paisagem e transbordando em risos todo o leve desespero que até então habitava aquelas almas fastigadas.

Era quase um fim: travestido de esperança.

2008-03-22

Inexistência

Ela revira os cantos de seu quarto atrás de velhos discos, procura em cestas, dentro de seu armário e nas gavetas, procura por Jorge Ben, Caetano, Mutantes, Milton, Chico, procura a febre seca que estampava sua testa durante a juventude, procura a fumaça do baseado, o gosto do café, o cheiro do refrigerante sem gás, o vôo matinal das gaivotas, e torna a sentar-se em sua repousante cadeira, vê-se cansada.

É tomada novamente por um agito, deita-se no chão de carpete, pensa em sua insignificância e em toda a insignificância dos demais, confronta o seu engano com a importância de seus objetos, o abajour, a cortina, a cama, os cadernos, sente-se confortavelmente só, mas não há medo ou decepção em sua boca, ela é ordinariamente igual aos outros, tanto em loucura como em seu falso estado de plena consciência.

Na verdade não mais se importa com o que a rondava, apenas finta o que lhe chama atenção, vê os quadros pintados por sua mãe décadas atrás, estão ali intactos, a tinta um pouco gasta, mas são mais inteiros que a pele que cobre a mãe, o pai, a vó, o seu pálido rosto cansado, são mais elegantes que ela vestindo calça jeans, sandália, meia-calça, espia o espelho e ri com a cena que assiste, o filme que se cria em seu desespero de querer apenas estar.

Cansou de ser, resolveu estar ausente de si e entender a sua ausência como um presságio da névoa que sentia acobertar seus olhos, a névoa branca que quase cegava a sua esperança, feria o seu alento, enforcava seu suspiro, quase morte, mas não se via caminhando rumo ao epílogo de um enredo, era importante estar parada, berrar seu silêncio, pôr fim à sua inexistência.

Agora ela gosta de inventar seus próprios dias e dos dias que não dizem nada, ensaia ver corpos em conflito, sangue sobre a sua cama, água da tempestade batendo áspera ao vidro da janela, os sons, as mãos, o subsolo, o calor. Fala sozinha ao telefone, experimenta ecos, pisa sobre os cacos, dilapida o seu suor, entrega-se ao desatino de sua pérpetua escuridão, dorme.

Ela levanta do carpete, enjoa de sua ausência, precisa estar novamente, acreditar no que toca o seu corpo e molha seus ouvidos, esquenta os seus pés e lhe queima o rosto. Sente-se afogada em papéis, presa ao que ouve, enlaçada em memórias, engasgada.

Despe-se do que a cobre, volta a sentar-se sobre sua cadeira, acende um cigarro, liga a vitrola, inventa a sua própria música e descobre novamente estar imersa ao declive do tempo.

2008-02-05

Pra tudo se acabar na quarta-feira

As baianas sobem o morro lentamente, uma por uma, trajando o silêncio reservado aos epílogos das grandes tragédias. Seguram dignamente as sobras de suas fantasias agora já arrebentadas, transformadas em trapos, os mesmos trapos que horas antes as haviam vestido gloriosamente e acompanhado os seus sorrisos quase centenários, inebriados pela bateria.

O silêncio só não é completo graças ao crioulo que sobe o morro marcando os seus passos com o compasso do surdo e que a esta hora confunde-se com o compasso de seu fastigado coração, tum-tum, tum-tum. A mulata chora incosoladamente dentro do barracão, chora pela saudade de ter sido rainha por uma única noite, viveu o ápice de sua vida carnavalesca ao ser aplaudida por todos que a rodeavam, e agora lamenta pela pouca duração de seu reinado.

O chão de terra molhada conserva-se repleto de confete, serpentina, sangue, suor e sonhos, que alimentaram a ilusão daqueles pobres que viraram reis, pierrots e arlequins, empunhando as suas máscaras ainda que por uma noite e dedicando as suas vidas ao esplendor da fantasia que mais tarde servirá de cortina e cobertor.

Por trás do morro a burguesia varre a tempestade, os bate-bolas não vestidos caminham trepidamente pelas ruas, formando uma espécie de retrato de cidade fantasma, que esperará mais 1 ano para que possa ressurgir novamente. Os meninos sem chinelo imitam o Redentor, e oram pelo Deus preto que há de insurgir do asfalto para fazer do morro a sua morada.

Lá de baixo alguns se alimentam dos restos de lembranças, as cabrochas acordam de seus sonhos pitorescos, juntando-se à longa andança fúnebre das baianas, fazendo desabrochar a imperfeição antes escondida e trazendo à tona as suas cicatrizes e máscaras que se racharam ao longo do caminho.

As máscaras quedaram ao chão, a marcha enfim parece ter acabado, mas ainda se ouve o cavaco desafinado que cumpre o papel de redimir todos os pecadores, as suas cordas tortas esboçam os rostos de todos os ausentes, ainda presos às noites anteriores, já saudosos pela partida dos zés pereiras, arlequins e colombinas.

Todos sem direito a julgamento se tornarão cinzas na quarta-feira e farão parte deste cenário agora morto e escasso, mas que em breve dará lugar à folia, mesmo que para isso se torne necessária mais uma áspera caminhada de pés descalços, onde as fantasias já estarão guardadas em seus armários no aguardo pela efêmera glória das folias.

2008-01-31

Carnavália

Eu contive o riso ao te ver vestida de colombina cor de rosa, pois eu já conheço o seu temperamento e não me pareceu boa idéia travar contigo mais uma discussão boba pré-carnavalesca; o mais estranho foi constatar que você fica linda até mesmo vestida assim.

Decidi por não vestir minha fantasia de arlequim arrependido, revirei meu antigo baú e reencontrei meu velho tamborim dos tempos de moleque, e mesmo após tanto tempo sem empunha-lo, decidi levar o instrumento junto comigo.

E mais uma vez nós fomos às ruas lotadas, e fizemos parte do colorido da folgança popular, você não sabe, mas eu vi sua risada escondida quando sambei torto ao som da cabeleira do Zezé, debaixo de alguns poucos pingos saudosos de chuva, e equilibrando meu tamborim com a cachaça.

Nos abraçamos fortemente tentando acompanhar a marchinha embriagada que se fazia doce em seus ouvidos de colombina indefesa, enquanto o Zé-Pereira arrastava uma multidão às suas costas e uma horda de menininhas travestidas de ciganas corria loucamente à nossa volta, e de repente tudo se juntava ao cenário da folia, todas as cores vinham de encontro ao nosso próprio encontro e todos os olhares prestavam festejos ao nosso beijo mascarado, e todos os risos encardidos se chocavam ao nosso riso oculto.

Por alguns momentos fomos dois meros desconhecidos à espera de seus pares, sumidos, encobertos pela multidão de fantasiados, seresteiros, bailarinas, mendigos, tocadores de zabumba e tantos outros. Fomos um só disfarce mal acabado, uma só quimera, um sumiço dentro das marchas que vinham uma a uma e enlaçavam os nossos joelhos uns aos outros.

Era apenas o início da festa que se prolongaria pelos próximos dias e noites, ainda haveriam muitas fantasias a serem rasgadas e máscaras para quebrarmos, zombaríamos pelas madrugadas adentro, colorindo as avenidas com os nossos risos e ilusões, iríamos gargalhar infantilmente até de nossos insucessos, e nem nos importaríamos em dançar com as pernas bambas o nosso samba atravessado até cansarem os nossos pés.

E já ebriamente cansados ao fim do efêmero festejo, marcharíamos descalços sobre o tapete de serpentinas molhadas, ouvindo os ecos resplandecentes das marchas de dias atrás, catando ainda devaneios que havíamos deixado pelo caminho, a fim de que a nossa existência foliona se perpetuasse pela infinitude de nosso baile de máscaras.

2008-01-07

Vodka Barata

Estas ruas sem almas não me dizem respeito, nem seus becos escuros me soam estranhos, mas a melodia da neblina que recai sobre os telhados e que ecoa solitário por entre os prédios e bares ainda vazios, me parece estranhamente familiar.

Há pessoas por todas as partes, embora na maioria das vezes eu finja não vê-las, não sei se por medo ou vergonha, ou até por achar que muitos deles riem de mim. Eu até queria um cigarro, faz tanto tempo que não fumo, tanto tempo sem heroína, sexo ou álcool, esse tipo de coisa que melhora de forma tão fácil a vida da gente, nos deixando em um estado de torpor, eu sonho acordado ainda que aquilo que eu veja seja somente a escuridão.

Ah, mas dela me lembro bem, o vestido bordô que delimitava perfeitamente o contorno de seu corpo, o batom vermelho que acentuava seus lábios, o seu olhar de moça inocente, o modo como fumava e parecia não saber o que o cigarro fazia em sua boca. Naquela madrugada seca embriagamo-nos de vodka barata e conversamos sobre os nossos dramas triviais, ela era um mulher de poucas idéias, mas que conseguia me distrair com as suas mentiras.

Houve uma época em que não me importava se haveria a tarde seguinte, ou se descobriria um novo céu para a minha existência. Foram tempos estranhos de palavras escasssas e auto-piedade, e que parecem voltar agora com muito mais força, como uma dor que mostra-se intrínseca a mim.

Não me sinto mal assim desde o dia em que quebrei minha máquina de escrever, acho. Aliás, aquela foi a última vez em que a encontrei, perdida pelas esquinas de nossa cidade, procurando algum bêbado solitário interessado em lhe pagar o seu almoço do dia seguinte, ou meramente uma criança louca disposta a compartilhar de sua droga. Eu fui o louco, e fui o bêbado também.

Eu fui o amante, o panaca que não sabe o que quer, fui o falso amigo, o otário que empresta a pouca grana que tem, fui o consolo. Ela se divertia com meu desespero, me chamava de garoto perdido e me levava à sua cama úmida. Grande porcaria; ela mal sabia o que fazer, não sabia quem era ou para onde fugiria quando não desse mais para adiar o pagamento do aluguel ou a conta do bar.

Não sou bom jogador, e me torno pior quando tento a trapaça .Mas dessa vez eu me dei mal pra valer, os caras notaram a minha cara de babaca quando eu saquei o ás de meu bolso. Talvez não fosse tão ruim se não fosse a quarta tentativa, talvez não fosse tão ruim se não fosse o dinheiro que me restava, talvez não fosse tão ruim se não tivessem me esmurrado até meus dentes racharem. Mas é tudo suposição.

Eu vou embora, e dessa vez é sério.Vida de merda, cansei de você, cansei também desta cidade maldita, das madrugadas em claro regadas a rum, das putas que gargalham de meu fracasso, dos amigos que não tenho, das festas lúgubres que vez ou outra freqüentei, e destas ruas sem almas que tanto me sufocam.

Depois de tanto tempo, sinto sono, e sinto alívio. Deve ser por não fazer idéia de onde estarei amanhã quando embarcar no primeiro trem que aparecer na estação, desprovido de mala,arrependimentos ou saudades, levando comigo somente a minha guitarra e o meu fracasso.

Já posso ver ao longe as ruínas que meu coração tanto desejou. Não há mais nada a fazer aqui.