2006-09-03

Beatriz

Se não corta os pulsos, não é por medo ou auto-piedade, mas pelo caçula que esmurra com assustadora insistência a porta do banheiro, que permanece trancado há um bom tempo.”Injerir arsênico talvez fosse mais poético...”ironiza, sem se importar muito o que pensarão os pais quando ao chegar em casa, depararem-se com o quarto em total estado de desordem, as roupas rasgadas e espalhadas, em cima da cama, abarrotadas pelo chão, o espelho rasbicado com batom, os diários destruídos... “Mamãe vai ficar uma fera...” pensa silenciosamente.
“Sete da noite, há 2 horas me encontro aqui, qual pulso corto primeiro?” ironiza novamente, e se recorda da discussão árdua que tivera com a mãe no dia anterior, e recorda também com amargura das duras palavras que falou e ouviu da boca de sua mãe.”Você não é uma filha, é um encosto em minha vida!”, “Mas eu nunca disse que te amava, nunca!”.”Foi um exagero” reconhece, mas não se arrepende, “Sou fútil demais para me arrepender”, mas sabe que no fundo a mãe tem razão.Mais uma vez encontrou em sua velha mochila os papelotes de cocaína, mais uma vez chegara drogada em casa, já de manhã em plena sexta-feira, cheirando a conhaque e lança-perfume, mais uma noite em claro, mais um dia desperdiçado.
O garoto parou de bater, cansou-se provavelmente.Sempre a mesma coisa, as mesmas brigas, o mesmo drama, a mesma cena, os mesmos métodos.E ela se lembra das vezes em que desejou muito ser criança novamente, e correr sem nenhum temor pelo quintal de casa, e brincar de boneca com as amiguinhas, e pegar escondida o delicioso bolo de abacaxi da vovó.Ela sente falta de sua vó também, sente falta das tardes de sábado em que ouvia com fascinação as histórias contadas pela simpática velhinha, e ela sabia que eram só histórias, que nada daquilo era verdade, mas o que importava? Ela se sentia feliz, era isso o que importava.
Se levanta do chão úmido do banheiro, e contempla-se no espelho quebrado.”Meu pai diz que sou linda, que pareço ser feita de porcelana”, ela ri, porque sempre viu o pai como uma figura fria, distante.Preocupação em excesso com o trabalho, a necessidade de pagar as contas no fim do mês, a tão sonhada casa de praia...”E eu ali, perdida clamando por socorro ao lado dele...” mas ele parecia não se importar, afinal o trabalho é que dava o sustento à família não é mesmo?
Sete e meia.Os pais acabaram de chegar, ela ouve o carro estacionar na garagem, e ouve também os passos apressados do irmão em direção à porta, “Eles chegaram!”, e agora? Vai desistir como das outras três vezes(ou teriam sido quatro, cinco...)? Ou terá coragem de cumprir com o que prometera? “Ainda não terminei minha discussão com mamãe”, limpa o rosto, retoca a maquiagem e abre a porta do banheiro.
“Ainda há o sábado que vem”.

7 comentários:

Angélica Juns disse...

maravilhoso, Iuri!
adoro narrativas, descrições, cenas e conflitos...ainda mais quando tão bem tricotados.
abraço

Anônimo disse...

Mto bom, assim como os outros tb.Gosto dos títulos,são sugestivos.
Bjos

Anônimo disse...

Oieeee... Quem escreve tem sempre a capacitade de ser elogiado... Escrever não é apenas unir letras, mas sim pensamentos... Um bjo... fuiii

Anônimo disse...

, lembrei da canção de chico e edu lobo com mesmo nome. e a vida de beatriz por um triz, narrativa forte, e beatriz por um triz...
|abraços meus|

Anônimo disse...

nossa!!! muito bom esse seu texto?!!! mas ficaria ainda melhor se vc o transformasse em livro onlne, dando continuidade a essa história!!!! adorei!!!!!

Lucas Malatesta disse...

meu cara concordo com todos os elogios acima.....muito bom mesmo
minha cogratulações
Lucas

Anônimo disse...

Ótima narrativa e delicioso final... ihihihihi
Rabuja