2007-10-02

A Gaita

Perto daquela estrada surrada, coberta de areia, um coroa toca uma triste melodia em sua gaita americana, e é neste momento que eu passo ao seu lado, com meu cigarro em boca, vestindo minha jaqueta desbotada e pensando no que eu iria dizer aos meus velhos amigos, assim que finalmente pudesse revê-los após tantas primaveras jogadas no lixo.

E aquele coroa parece disfarçar um riso, e eu fico pesando como é que um sujeito já em fim de vida, ainda encontra um motivo pra esboçar um sorriso desdentado, e ele me olha, parece querer demonstrar que eu sou a pior coisa que ele vê em anos, e tudo nesse instante me parece tão patético, que eu lhe devolvo a risada escondida.

Há um vira-lata sarnento deitado sobre os seus pés, e a impressão que me passa é a de que um nada seria sem o outro, o coroa e o cachorro, o coroa e sua gaita que toca a triste música, e o andarilho com o cigarro, que caminha trôpego pela estrada, que o velho parece conhecer tão bem.

E eu me dou conta, que a noite já veio, e me pergunto sobre quanto tempo eu me encontro ali em frente ao sujeito e seu cachorro sarnento, e vejo que me parece muito árdua esta parte de minha andança, talvez me seja necessário parar.O sujeitinho me olha de cima a baixo, tira a gaita de sua boca, pega uma pequena garrafa de rum, antes escondida em seu bolso, bebe três pequenos goles, e põe a garrafa de volta ao seu bolso, neste instante eu percebo que ele parece me desafiar.

Eu atiro meu cigarro ao chão, piso por cima dele, olhando sempre bem na cara daquele homem, pego meu lenço, seco meu rosto suado e o guardo em meu bolso de trás, junto com a carteira; o coroa observa tudo com assustador ar de menosprezo, e mais uma vez disfarça uma risada.Eu pego mais um cigarro, acendo, dou três tragadas, e o jogo em direção ao vira-lata, que parece acordar, mas nada faz...deve ser só um cachorro velho e cego, eu penso, e volto a caminhar.

Olho para trás, e vejo que o coroa está com o meu cigarro na boca, e o cachorro já deu alguns passos em outra direção, eu paro novamente, espero o velho pegar a sua gaita, ele começa de novo a tocar uma triste música, usando a batida dos pés como percussão.Ao fim da música, ele me sorri escandalosamente, orgulhoso de seu talento, e eu lhe jogo a minha última moeda, em sinal de reconhecimento,sim, agora nós já somos quase amigos.

E vou embora, assoviando alguns versos de Bob Dylan, disposto finalmente a dar um abraço em caras que há tanto tempo eu havia abandonado, era chegada a hora de abandonar as estradas e voltar para casa, caminhar perdido ao som da melodia de um banguela; enfim as coisas pareciam voltar a ter o seu glamour, e o idiota vencia mais uma vez.

"Because something is happening here
But you don't know what it is
Do you, Mister Jones?"

2 comentários:

Anônimo disse...

Ótimo conto, poeta !

Anônimo disse...

Muito, muito, muito bom.
Adorei as coisas que escreve.
Me identifiquei com algumas.
vou visitar sempre...
bjos