2008-03-22

Inexistência

Ela revira os cantos de seu quarto atrás de velhos discos, procura em cestas, dentro de seu armário e nas gavetas, procura por Jorge Ben, Caetano, Mutantes, Milton, Chico, procura a febre seca que estampava sua testa durante a juventude, procura a fumaça do baseado, o gosto do café, o cheiro do refrigerante sem gás, o vôo matinal das gaivotas, e torna a sentar-se em sua repousante cadeira, vê-se cansada.

É tomada novamente por um agito, deita-se no chão de carpete, pensa em sua insignificância e em toda a insignificância dos demais, confronta o seu engano com a importância de seus objetos, o abajour, a cortina, a cama, os cadernos, sente-se confortavelmente só, mas não há medo ou decepção em sua boca, ela é ordinariamente igual aos outros, tanto em loucura como em seu falso estado de plena consciência.

Na verdade não mais se importa com o que a rondava, apenas finta o que lhe chama atenção, vê os quadros pintados por sua mãe décadas atrás, estão ali intactos, a tinta um pouco gasta, mas são mais inteiros que a pele que cobre a mãe, o pai, a vó, o seu pálido rosto cansado, são mais elegantes que ela vestindo calça jeans, sandália, meia-calça, espia o espelho e ri com a cena que assiste, o filme que se cria em seu desespero de querer apenas estar.

Cansou de ser, resolveu estar ausente de si e entender a sua ausência como um presságio da névoa que sentia acobertar seus olhos, a névoa branca que quase cegava a sua esperança, feria o seu alento, enforcava seu suspiro, quase morte, mas não se via caminhando rumo ao epílogo de um enredo, era importante estar parada, berrar seu silêncio, pôr fim à sua inexistência.

Agora ela gosta de inventar seus próprios dias e dos dias que não dizem nada, ensaia ver corpos em conflito, sangue sobre a sua cama, água da tempestade batendo áspera ao vidro da janela, os sons, as mãos, o subsolo, o calor. Fala sozinha ao telefone, experimenta ecos, pisa sobre os cacos, dilapida o seu suor, entrega-se ao desatino de sua pérpetua escuridão, dorme.

Ela levanta do carpete, enjoa de sua ausência, precisa estar novamente, acreditar no que toca o seu corpo e molha seus ouvidos, esquenta os seus pés e lhe queima o rosto. Sente-se afogada em papéis, presa ao que ouve, enlaçada em memórias, engasgada.

Despe-se do que a cobre, volta a sentar-se sobre sua cadeira, acende um cigarro, liga a vitrola, inventa a sua própria música e descobre novamente estar imersa ao declive do tempo.

4 comentários:

Anônimo disse...

às vezes também fico enjoada de minha ausência e acabo me reenchendo com coisas que nem combinam comigo. me vi tão despida nesse texto...
bjos
sempre ótimo encontrar algo aqui

Tainá disse...

passando para matar as saudades,
moço.

Eduardo Winck Veiga disse...

São palavras lindas cara, ainda mais com o acompanhamento que tive (um blues de BB.king)lendo "vodka barata"!
Me adiciona no msn se quiser: duhh_o.o@hotmail.com
Também tento escrever algo as vezes.
Abraço.

Ps: http://ventodoeste.blogspot.com/

Anônimo disse...

Cada um com sua própria maneira de (in)existir, de criar o próprio teatro, ensaiar a própria tragédia.. Mas, no fim, o que todos queremos são aplausos.

Que a tua protagonista encontre rumos, se não os mais certos, ao menos os mais suaves de percorrer

Beijo